quinta-feira, 28 de julho de 2022

GIL VICENTE - O PAI DO TEATRO PORTUGUÊS

 






Relativa liberdade criativa concedida pela monarquia portuguesa




Gil Vicente, dramaturgo e poeta português, é considerado o representante maior da Literatura renascentista de Portugal antes de Camões. Também conhecido como “Pai do Teatro Português” e a figura mais importante do Humanismo literário introduzido em Portugal a partir de 1385. Por falta de documentos, muitos fatos da sua vida são cercados de dúvidas, como o próprio local e ano de seu nascimento (Guimarães, em 1465). O dramaturgo e poeta tinha considerável formação intelectual. Estudou latim, espanhol, francês e italiano, mas, ao que parece, nunca frequentou uma universidade, embora conste que ele estudou na universidade espanhola de Salamanca.



Seus textos dramáticos foram escritos entre 1502 e 1536 e sua carreira bem-sucedida ocorreu durante os reinados de D. Manuel I (1469-1521) e de seu filho D. João III (1502-1557). Em 1502, sua peça Auto da Visitação foi encenada para a rainha Dona Maria e na presença do rei Dom Manuel durante a celebração do nascimento do príncipe que viria a ser o futuro D. João III. Além de autor da peça, baseada na adoração dos magos, ele também atuou como ator.



No monólogo, escrito em castelhano, um simples homem do campo expressa sua alegria pelo nascimento do herdeiro, desejando-lhe felicidades. O espetáculo entusiasmou a Corte e foi a porta de entrada para sua carreira que se estendeu por mais de 30 anos.



Apesar de a monarquia portuguesa estar muito atrelada à religiosidade, o autor se beneficiou de uma relativa liberdade criativa. A Inquisição, ou Santa Inquisição, também criada na Idade Média (século XIII), era dirigida pela Igreja Católica Romana e composta por um grupo de instituições dentro do sistema jurídico da Igreja Católica Romana cujo objetivo era combater a heresia, a blasfémia, a bruxaria e os costumes considerados desviantes e uma ameaça às doutrinas da Igreja. 



O Tribunal do Santo Ofício foi instituído pelo Papa Gregório IX, em 1233, com o intuito de investigar as heresias dos cátaros, também chamados de albigenses. O pontífice entregou o funcionamento do Tribunal à Ordem Dominicana, criada por São Domingos. Como o Tribunal do Santo Ofício se estabeleceu em Portugal em 1536, algumas das peças de Gil Vicente foram censuradas somente em 1551, quinze anos após sua morte.




Características da Obra de Gil Vicente


O Humanismo ocorreu em um período histórico caracterizado pela transição entre a Idade Média e o Renascimento. Por isso, elementos medievais conviviam com ideias renascentistas e a coexistência de valores religiosos e clássicos influenciava os artistas da época.



Embora tenha vivido em pleno Renascimento, Gil Vicente não se deixou impregnar pelas concepções humanísticas. Por meio de suas peças, ele retratou os valores populares e cristãos da vida medieval. Seu teatro se caracteriza por ser primitivo e popular, embora tenha surgido no ambiente da corte, para servir de entretenimento nos serões oferecidos ao rei.


Profundo observador da realidade, o autor escrevia textos dramáticos para serem encenados em um palco, o que era uma novidade no teatro português. Também introduziu o uso de cenário nas apresentações. A linguagem ostentava certo coloquialismo para ser fiel aos personagens e retratar os diferentes modos de fala e as diferenças sociais. Para isso, ele misturava o popular, o arcaico, o moderno e o elitizado. 



Sua obra é rica pela universalidade dos temas e pelo lirismo poético que soube colocar na arte, em plena atmosfera renascentista. Sua observação satírica não deixou ninguém de fora, papa, rei, clero, feiticeiras, alcoviteiras, moças casadoiras, judeus e agiotas. 


O teatro vicentino e a tradição teatral em Portugal


Gil Vicente fundou uma tradição teatral em Portugal, por isso é considerado o criador do teatro português. Tudo indica que o autor não se restringia apenas a escrever suas peças, mas também atuava nelas e dirigia os atores. Era, portanto, responsável por todas as etapas da montagem do espetáculo teatral. A temática religiosa marcante em sua obra agradava não só ao público em geral, mas, principalmente, ao rei D. Manuel I, bastante religioso, e à sua irmã Dona Leonor.




No mais, o teatro vicentino apresentava características condizentes com a corte portuguesa da época e continha uma forte crítica moral a determinados costumes ou atitudes que o dramaturgo verificava em sua época. Era sobretudo, um teatro moralizador, apesar de apresentar alguns elementos que incomodaram a Igreja depois de sua morte. Como a maior parte de suas peças tinha um teor satírico, uma das mais célebres frases do dramaturgo era: rindo se castigam os costumes.


As três fases da carreira de Gil Vicente


Gil Vicente escreveu mais de quarenta peças, algumas em espanhol e muitas em português. Nelas, ele criticava de forma impiedosa toda a sociedade de seu tempo. O valor do teatro vicentino reside na sátira, muitas vezes agressiva, mas equilibrada pelo pensamento cristão. De acordo com o assunto abordado, sua obra pode ser classificada em três fases: 


Primeira fase - 1502-1508 - com influência espanhola de Juan del Encina, o autor apresenta peças que possuem um conteúdo religioso:


1502 - Auto da Visitação 

1502 - Auto Pastoril Castelhano 

1503 - Auto dos Reis Magos 

1504 - Auto de São Martinho 

1505 - Quem tem Farelos? 

1508 - Auto da Alma 


Segunda fase - 1508-1516 - a sátira social apresenta ampla visão da sociedade da época, uma linguagem ferina em caráter mais pessoal. São dessa época as obras-primas:


1509 - Auto da Índia 

1510 - Auto da Fé 

1511 - Auto das Fadas 

1511 ou 1513 - Auto da Sibila Cassandra 

1512 - O velho da Horta 

1513 - Exortação da Guerra 

1514 - Comédia do Viúvo 

1516 - Auto da Barca do Inferno 

1516 - Auto da Fama 




Terceira fase -1516-1536 - Gil Vicente atinge sua maturidade intelectual. Aparece, ao lado da crítica de costumes, atitudes moralizantes de caráter medieval. São dessa época as melhores obras teatrais da Literatura Portuguesa: 


1518 - Auto da Barca do Purgatório 

1519 - Auto da Barca da Glória 

1521 - Comédia de Rubena 

1521 - Cortes de Júpiter 

1521 - Farsa das Ciganas 

1522 - Tragicomédia de Dom Duardos 

1522 - Pranto de Maria Parda 

1523 - Auto Pastoril Português 

1523 - Farsa de Inês Pereira 

1524 - Frágua de Amor 

1525 - Farsa do Juiz da Beira 

1526 - Farsa do Templo de Apolo 

1527 - Auto da Feira 

1527 - Auto da História de Deus 

1527 - Comédia Sobre a Divisa da Cidade de Coimbra 

1527 - Auto da Nau dos Amores 

1527 - Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela 

1527 - Farsa dos Almocreves 

1529 - Auto do Triunfo do Inverno 

1529 - Farsa do Clérigo da Beira 

1532 - Auto da Lusitânia 

1533 - Auto de Amadis de Gaula 

1533 - Romagem de Agravados 

1534 - Auto de Mofina Mendes 

1534 - Auto da Cananeia 

1536 - Floresta de Enganos 


Auto da Barca do Inferno 


O Auto da Barca do Inferno ou Auto da Moralidade é uma obra de dramaturgia que foi escrita em 1517 pelo escritor humanista português Gil Vicente. Essa peça é uma das mais emblemáticas do dramaturgo. Foi encenada em 1531 e faz parte da Trilogia das Barcas, ao lado do Auto da Barca do Purgatório e o Auto da Barca da Glória. Auto é um gênero que surgiu na Idade Média. São textos curtos de temática cômica e geralmente formados por um único ato.


Resumo e Análise da Obra


Os dois barqueiros, Anjo e o Diabo, recebem as almas dos passageiros que passam para o outro mundo. A cena acontece num porto. Um dos barcos vai em direção ao céu e outro ao inferno. A maioria dos personagens vai para a barca do inferno porque, durante suas vidas, não seguiram o caminho de Deus, foram trapaceiros, avarentos, interesseiros e grandes pecadores. Por seguirem os preceitos de Deus e viverem de maneira simples,  Joane, o parvo, e os quatro cavaleiros, vão para a barca do céu. 


A obra satiriza o juízo final do catolicismo, além da sociedade portuguesa do século XVI. A alegoria do juízo final é um recurso utilizado pelo dramaturgo por meio de seus personagens (diabo e anjo). Além disso, cada personagem possui uma simbologia associada à falsidade, ambição, corrupção, avareza, mentira, hipocrisia, etc.


Personagens e seus Pecados


Diabo: capitão da barca do Inferno.

Anjo: capitão da barca do Céu.

Fidalgo: tirano e representante da nobreza. Teve uma vida voltada para o luxo e vai para o inferno.

Onzeneiro: homem ganancioso, agiota e usurário. Por ter sido um grande avarento em vida, vai para o inferno.

Joane, o parvo: personagem inocente que teve uma vida simples, vai para o céu.

Sapateiro: homem trabalhador, mas que roubou e enganou seus clientes. Também vai para o inferno.

Frade:  apesar de ser um representante da Igreja, tinha uma amante, Florença, e não seguiu os princípios do catolicismo.  Vai para o inferno. 

Brígida Vaz: alcoviteira (que faz mexericos e intrigas).  Condenada por bruxaria e prostituição, vai para o inferno.

Judeu: personagem que foi recusado pelo Diabo e pelo Anjo por não ser cristão. Vai para o inferno.

Corregedor e Procurador: representantes da lei, foram acusados de serem manipuladores e utilizarem das leis e da justiça para o bem e interesses pessoais. Ambos vão para o inferno. 

Cavaleiros: grupo de quatro homens que lutaram para disseminar o cristianismo em vida. São absolvidos dos pecados que cometeram e vão para o céu.




A vida de Gil Vicente


Gil Vicente nasceu, provavelmente, no ano de 1465, em Guimarães, Portugal. Há muitas incertezas acerca de sua biografia, devido à falta de documentação. No entanto, é sabido que ele teve dois matrimônios. A primeira esposa talvez se chamasse Branca Bezerra. Ela lhe deu dois filhos e faleceu em 1514. Três anos depois, o autor se casou com Melícia Rodrigues, com quem teve três filhos.


Na mesma época havia outro Gil Vicente, um ourives. Alguns estudiosos afirmam que, na verdade, os dois foram a mesma pessoa. Em 1509, se tornou ourives particular  de Dona Leonor de Avis (1458-1525) e obteve a proteção da “rainha velha”. Por isso, o rei D. Manuel I, irmão de Dona Leonor, fez de Gil Vicente o responsável pelas comemorações da chegada a Lisboa de sua nova esposa, quando o monarca se casou pela terceira vez. Em 1511, foi nomeado vassalo do rei e, em 1513, Mestre da balança da Casa da Moeda.


Durante o governo de D. João III, o escritor recebeu do rei alguns benefícios em dinheiro. Ele tinha a proteção da Coroa Portuguesa, apoio às suas apresentações teatrais e apreço por elas. Gil Vicente, então, passou a ser um nome reconhecido. Nos anos seguintes, ele organizou diversos eventos, festejos e celebrações da realeza sempre aproveitando para apresentar seus textos. Com grande aprovação do público e da corte portuguesa, adquiriu o respeito dos seus contemporâneos e deixou obras que sobreviveram ao tempo e às críticas. Teve, portanto, uma vida bem-sucedida como dramaturgo. Faleceu por volta de 1536 em local desconhecido.



sexta-feira, 15 de julho de 2022

SÃO TOMÁS DE AQUINO, O PRINCIPAL FILÓSOFO E TEÓLOGO OCIDENTAL DA IGREJA CATÓLICA ROMANA

 







São Tomás de Aquino - teólogo e filósofo cristão italiano



São Tomás de Aquino, San Tommaso d'Aquino, também chamado de Aquino, foi um teólogo dominicano italiano, intitulado Doutor da Igreja Católica, discípulo do grande escolástico Alberto Magno e principal  pensador da Escolástica medieval. Inspirado nas ideias do filósofo grego Aristóteles, o trabalho de São Tomás de Aquino esteve pautado no realismo aristotélico.


Introdução de Aristóteles na filosofia medieval


O catolicismo crescia e havia a necessidade de formar novos sacerdotes, além de levar as bases da civilização ocidental a todos os povos onde o catolicismo havia chegado. Para isso, a Igreja incentivou a construção dos primeiros hospitais, asilos, universidades e escolas. Essas instituições continham bibliotecas que preservaram as obras gregas e romanas contra o vandalismo de povos bárbaros e islâmicos, após a queda do império romano. São Tomás resgatou e introduziu Aristóteles na filosofia medieval. As correntes medievais anteriores tinham por base Santo Agostinho e Platão. 





Racionalismo científico

O racionalismo afirma que tudo o que existe tem uma causa Inteligível, mesmo que essa causa não possa ser demonstrada empiricamente, tal como a causa da origem do Universo. Ela privilegia a razão em detrimento da experiência do mundo sensível como via de acesso ao conhecimento. Também considera a dedução como o método superior de investigação filosófica.


Pela primeira vez na história, crentes e teólogos cristãos foram confrontados com as rigorosas exigências do racionalismo científico. Novas gerações de homens e mulheres, incluindo clérigos, reagiam contra a noção tradicional de desprezo pelo mundo e lutavam para dominar as forças da natureza por meio do uso da razão. A estrutura da filosofia de Aristóteles enfatizava a primazia da inteligência. A tecnologia tornou-se um meio de acesso à verdade; artes mecânicas eram poderes para humanizar o cosmos. 


Assim, a questão sobre a relação entre palavras gerais como “vermelho” e particulares como “este objeto vermelho” – que havia dominado desde o início a filosofia escolástica foi deixada para trás, e uma metafísica coerente do conhecimento e do mundo foi sendo desenvolvida.


Filosofia Aristotélica-Tomista ou Tomismo


O pensamento de São Tomás de Aquino teve origem no contexto da Quaestio disputata. O debate e a argumentação em busca da verdade sempre foram incentivados pela Igreja, mas na época da Escolástica focou-se em entender qual o valor da fé e da razão.


O grande feito de Tomás de Aquino e a base de seu pensamento é a união entre fé e razão. Como estudioso da filosofia clássica, ele conseguiu perceber a relação existente entre a lógica aristotélica e a fé cristã. Assim, ele criou uma ponte entre filosofia e teologia.



A filosofia até então explorada era a de Platão. De um lado havia os dialéticos que defendiam o uso da razão para explicar tudo, do outro havia os deístas que queriam considerar apenas as Sagradas Escrituras como única fonte possível de verdade.


São Tomás sabia que tudo o que havia nas Sagradas Escrituras era verdadeiro, mas também entendia que Deus era misericordioso. Assim, os povos que não conheceram a Palavra, poderiam chegar aos conceitos básicos da fé pelo uso correto da razão. Mesmo vivendo  anos antes de Cristo e numa sociedade politeísta, Aristóteles desenvolveu um pensamento lógico que apontava a existência de um único ser supremo, completo e anterior a todos. Portanto, fé e razão eram conciliáveis.


A partir daí, a época da Escolástica ficou marcada pela Filosofia Aristotélica-Tomista, ou simplesmente Tomismo, devido à junção de elementos da Filosofia aristotélica e da Teologia cristã. É a partir do conceito  aristotélico de Primeiro Motor Imóvel que São Tomás desenvolve seu pensamento de provar a existência de Deus.


Diferença entre essência, substância e existência


Os gregos observaram que existe um ideal das coisas formado pela sua essência. Isso é o que as tornam o que elas são. Para existir, acreditavam que essa essência deveria se materializar, ou seja, assumir uma forma que se vê e se toca, chamada substância.


Porém, São Tomás acrescenta a noção de que a substância não define a existência, é apenas uma possível consequência. Ele argumenta e desenvolve o pensamento de que a essência existe em si mesma, mesmo sem se tornar física. Caso contrário os nossos pensamentos deveriam ser físicos. 


Assim o conceito da ontologia é resgatado, a parte filosófica que estuda a existência do ser em qualquer condição. Para Aquino, Deus é um exemplo de essência que não depende de substância para existir.


No homem não há apenas uma distinção entre espírito e natureza, mas também uma homogeneidade intrínseca dos dois. Aquino encontrou em Aristóteles as categorias necessárias para a expressão desse conceito: a alma é a “forma” do corpo. Para Aristóteles, a forma é o que faz uma coisa ser o que é; forma e matéria – aquilo de que uma coisa é feita – são as duas causas intrínsecas que constituem cada coisa material. Para Tomás, o corpo é a matéria e a alma é a forma do homem. 




As duas realidades da natureza: physis e logos


A lógica da posição de Tomás de Aquino em relação à fé e à razão exigia que se reconhecesse a consistência fundamental das realidades da natureza. Uma physis (natureza) tem leis necessárias; o reconhecimento desse fato permite a construção de uma ciência segundo um logos (estrutura racional). Tomás evitou assim a tentação de sacralizar as forças da natureza por meio de um recurso ingênuo ao miraculoso ou à Providência de Deus. 


Para ele, todo um mundo “sobrenatural” que projetava sua sombra sobre as coisas e os homens, na arte românica como nos costumes sociais, confundia a imaginação dos homens. A natureza, descoberta em sua realidade profana, deve assumir o seu próprio valor religioso e conduzir a Deus por caminhos mais racionais, mas não simplesmente como uma sombra do sobrenatural. 


Havia o temor de muitos de que os valores autênticos da natureza não fossem devidamente distinguidos das inclinações desordenadas da mente e do coração. Teólogos de tendência tradicional resistiram firmemente a qualquer forma de filosofia determinista que, eles acreditavam, iria atrofiar a liberdade, dissolver a responsabilidade pessoal, destruir a fé na Providência e negar a noção de um ato gratuito de criação. Imbuídos das doutrinas de Santo Agostinho, eles afirmavam a necessidade e o poder da graça para uma natureza dilacerada pelo pecado. O otimismo da nova teologia sobre o valor religioso da natureza os escandalizou.


Embora fosse um aristotélico, Tomás de Aquino tinha certeza de que poderia se defender contra uma interpretação heterodoxa do “filósofo”, como era conhecido Aristóteles. Tomás sustentou que a liberdade humana poderia ser defendida como uma tese racional, admitindo-se que as determinações se encontram na natureza. 


Em sua teologia da Providência, ele ensinou uma criação contínua, na qual a dependência do criador da sabedoria criadora garante a realidade da ordem da natureza. Deus move soberanamente tudo o que cria; mas o governo supremo que ele exerce sobre o universo é conforme às leis de uma Providência criadora que quer que cada ser aja de acordo com sua própria natureza. 





Como conciliar fé e razão


Averroës, o destacado representante da filosofia árabe na Espanha, conhecido como o grande comentarista e intérprete de Aristóteles, teve suas obras conhecidas pelos mestres parisienses. Parece não haver dúvida sobre a fé islâmica do filósofo de Córdoba; no entanto, ele afirmou que a estrutura do conhecimento religioso era inteiramente heterogênea ao conhecimento racional. A existência de duas verdades — uma da fé, a outra da razão — pode, em última análise, ser contraditória. 


Esse dualismo foi negado pela ortodoxia muçulmana e ainda menos aceitável para os cristãos. Contudo, para  Siger de Brabant, professor de filosofia na Universidade de Paris e um dos principais representantes da escola radical, ou heterodoxa, a qualidade da exegese de Averróis e a inclinação totalmente racional de seu pensamento começaram a atrair discípulos na faculdade de artes da Universidade de Paris. 


Segundo São Tomás, Siger estava comprometendo não apenas a ortodoxia, mas também a interpretação cristã de Aristóteles. Aquino se viu encurralado entre a tradição do pensamento agostiniano, agora mais enfático do que nunca em sua crítica a Aristóteles e aos averroístas. O averroísmo radical foi condenado em 1270 e Tomás, que sancionou a autonomia da razão sob a fé, foi desacreditado.


No curso dessa disputa, o próprio método da teologia foi questionado. Segundo Tomás de Aquino, a razão é capaz de operar dentro da fé e ainda de acordo com suas próprias leis. O mistério de Deus é expresso e encarnado na linguagem humana; pode, assim, tornar-se objeto de uma elaboração ativa, consciente e organizada, na qual as regras e estruturas da atividade racional se integram à luz da fé. 


No sentido aristotélico da palavra, embora não no sentido moderno, a teologia é uma “ciência”; é o conhecimento que é racionalmente derivado de proposições que são aceitas como corretas porque são reveladas por Deus. O teólogo aceita a autoridade e a fé como seu ponto de partida e então procede a conclusões usando a razão; o filósofo, por outro lado, confia apenas na luz natural da razão.


A razão, para São Tomás, é uma capacidade humana criada por Deus. Portanto, quando a razão é bem utilizada, ela consegue aproximar uma pessoa à base da fé. Porém, quando a filosofia tenta explicar todos os pontos da fé ou acha que sozinha  consegue explicar todo o mundo, ela acaba sendo incompleta e resulta em erros.




Cinco vias para provar a existência de Deus 


As cinco vias são raciocínios que provam a existência de Deus usando apenas a razão. Esse pensamento é uma regressão causal, ou seja, parte de um ponto e vai avaliando o que veio antes dele para o causar.


Baseando-se em Aristóteles, percebemos que o mundo sempre está em movimento e que a finalidade desse movimento é melhorar as coisas. Não existe nada em nossa realidade que seja absolutamente imóvel, até os relevos se modificam com o passar dos anos. Portanto, somente o que é perfeito pode ser imóvel. A partir disso, podemos dizer que as coisas existem em duas formas ao mesmo tempo: 


Ato - é aquilo que é no presente, como existe agora. 

Potência - é o que vai se tornar no futuro.


Exemplo:


A semente de uma árvore é uma semente em ato e uma árvore em potência. Por mais que no presente vejamos só a semente, ali dentro está todo o componente de uma árvore. Se não  houver coisas artificiais prejudiciais, naturalmente a semente vai se tornar uma árvore porque essa é a sua função.


Portanto, o movimento existe para transformar a potência em ato. Então, a semente se transforma em árvore, e a árvore passa a ser o ato. Tendo esses conceitos em mente, São Tomás elabora as cinco vias:


1- O motor imóvel - no universo, todo movimento só existe porque há uma causa: se a folha cai, é porque ventou. Se ventou, é porque o ar se deslocou. Se o ar se deslocou, é porque houve diferença de pressão. Se houve diferença de pressão, é porque os átomos do ar se rearranjaram e assim por diante.


Por lógica, chegamos à ideia de que houve uma primeira coisa que causou o primeiro movimento do universo. Esse primeiro motor só pode ser imóvel, porque se fosse movido por alguém, deixaria de ser o primeiro.


2- A primeira causa eficiente - se a primeira causa é imóvel e o movimento só existe para aperfeiçoar, então a primeira causa é perfeita. Na linguagem comum, dizemos que algo é eficiente quando cumpre a sua função, portanto, ser perfeito é ser eficiente. Se cumpriu todas as funções, todas as potências já foram concretizadas, então também é ato puro.



Aqui fica evidente que São Tomás enxerga Deus como o primeiro motor imóvel e eficiente. Esse raciocínio lógico mostra que o primeiro ser é onipotente (pode tudo e só depende de si) e onipresente (está presente em tudo e antecede tudo), bem como a teologia cristã afirma.


3- Ser necessário e ser possível - se continuarmos o raciocínio, vemos que o primeiro ser é necessário para que todos os outros existam, pois ele é um ato com as várias potências. Portanto, existe o Ser Necessário (simplesmente é e não deixa de ser) e os seres possíveis (podem ou não existir, dependendo do Ser Necessário).


4- Graus de perfeição - nesta parte, vemos um argumento inspirado em Platão e misturado com Aristóteles. São Tomás acaba desenvolvendo um raciocínio de hierarquia das coisas, dependendo do quanto de ato e potência há nelas. Quanto mais próximos de Deus, mais ato será porque menos tem que aperfeiçoar. Assim, surge a hierarquia das criaturas: Deus, anjos, humanos, animais, etc. 


5- Governo supremo - todo esse raciocínio deixa claro que há uma ordem no mundo, sendo a própria racionalidade uma forma de reconhecer a ordem que já existe. Isso é muito perceptível quando vemos o comportamento dos animais, das estações, das causas das coisas. Cada uma tem um grau de ordem.


Se conseguimos criar uma máquina que funciona ordenadamente, é porque temos inteligência. E se nós temos inteligência, é porque houve uma Inteligência suprema que nos ordenou assim.


Ética, verdade única e direitos


No campo da ética, São Tomás de Aquino defendeu que a própria razão nos leva a agir de forma virtuosa, pois observamos que a mudança só existe com o intuito de melhorar. Dessa forma, há uma Lei Natural no interior de nosso ser que nos leva a agir assim, se dermos ouvido a ela. 


São Tomás de Aquino, usando as cinco vias para provar a existência de Deus, chega racionalmente à ideia de Verdade única e absoluta. O primeiro motor imóvel é aquele que é ato puro, portanto ele contém e é a Verdade. Por isso, ela não pode ser relativa.


Para Aquino e Aristóteles, o homem é um animal social e político. Daí surge a primeira forma natural de relação humana, a família. Em um segundo momento, as famílias se uniram a fim de se ajudar e formar sociedades. Em um terceiro plano, a sociedade se organizou em um Estado para facilitar a mediação entre elas.


Portanto, o Estado se formou naturalmente, mas deve existir subordinado à família. Ele deve servir e não ser servido, ser controlado e não controlar, além de ter a função de proteger as leis naturais. Assim, se a maioria das famílias possui uma religião, moral e ética bem consolidadas, é justo que o Estado reflita isso.




A Suma teológica e a Suma contra os gentios


Como teólogo, em suas duas obras-primas, a Summa theologiae e a Summa contra gentiles, Tomás foi responsável pela sistematização clássica da teologia latina. Como poeta, ele escreveu alguns dos mais belos hinos eucarísticos da liturgia da Igreja Católica. Embora muitos teólogos católicos romanos modernos não considerem São Tomás totalmente agradável, ele é reconhecido pela Igreja Católica Romana como seu principal filósofo e teólogo ocidental.


A Suma teológica, obra-prima indiscutível de Tomás de Aquino, foi escrita como um livro didático para estudantes de teologia, cuja fé já era presumida. Nela, Tomás de Aquino faz uma clara exposição dos princípios do catolicismo, que foram aceitos pela Igreja e continuam válidos. Foi escrita com o objetivo de provar que a razão humana não se opõe à fé. 


A Suma contra os gentios foi escrita como uma exposição sistemática e defesa da crença cristã para a persuasão dos incrédulos, e está entre os melhores textos da história da apologética. 


Contexto da metodologia de Tomás de Aquino


A forma literária das obras de Tomás de Aquino deve ser apreciada no contexto de sua metodologia. Ele organizou seu ensino na forma de “questões”, em que a pesquisa crítica é apresentada por argumentos pró e contra, de acordo com o sistema pedagógico então em uso nas universidades. As formas variavam de simples comentários sobre textos oficiais a relatos escritos das disputas públicas, que eram eventos significativos na vida universitária medieval. 




Oposições a Tomás de Aquino


Em 1277, os mestres de Paris, a mais alta jurisdição teológica da Igreja, condenaram uma série de 219 proposições; 12 dessas proposições eram teses de Tomás de Aquino. 


Esta foi a condenação mais grave possível na Idade Média; suas repercussões foram sentidas no desenvolvimento das ideias. Produziu durante vários séculos um certo espiritualismo doentio que resistiu ao realismo cósmico e antropológico de Tomás de Aquino.


Legado de São Tomás de Aquino


A biografia de Tomás de Aquino é de extrema simplicidade; narra pouco, mas algumas modestas viagens durante uma carreira inteiramente dedicada à vida universitária: em Paris, na Cúria Romana, novamente em Paris e em Nápoles. Seria um erro, no entanto, julgar que sua vida era apenas a vida tranquila de um professor profissional intocado pelos assuntos sociais e políticos de sua época. 


O drama que se passava em sua mente e em sua vida religiosa encontrou suas causas e produziu seus efeitos na universidade. Nas jovens universidades, todos os ingredientes de uma civilização em rápido desenvolvimento estavam reunidos, e a essas universidades a igreja cristã havia deliberada e autorizadamente confiado sua doutrina e seu espírito. Nesse ambiente, Tomás encontrou as condições técnicas para elaborar seu trabalho - não apenas as ocasiões polêmicas para lançá-lo, mas também o ambiente espiritual envolvente e penetrante necessário para isso. 


É dentro dos contextos homogêneos fornecidos por esse ambiente que é possível hoje descobrir a inteligibilidade histórica de sua obra, assim como forneceram o clima para sua fecundidade no momento de seu nascimento.


Tomás de Aquino foi canonizado santo em 1323 , nomeado oficialmente doutor da Igreja em 1567, e proclamado protagonista da ortodoxia durante a crise modernista do final do século XIX. Este elogio contínuo, no entanto, não pode excluir as dificuldades históricas em que ele se envolveu no século XIII durante uma renovação teológica radical - uma renovação que foi contestada na época e, no entanto, foi provocada pela evolução social, cultural e religiosa do Oeste. Tomás estava no centro da crise doutrinária que enfrentou a cristandade quando a descoberta da ciência e cultura gregas, e o pensamento parecia prestes a esmagá-lo. 




Biografia


São Tomás de Aquino, nasceu em 1224/25, em Roccasecca, perto de Aquino, Terra di Lavoro, Reino da Sicília. Seus pais possuíam um modesto domínio feudal em uma fronteira constantemente disputada pelo imperador e pelo papa. Seu pai era de origem lombarda; sua mãe era da herança normanda posteriormente invasora. Seu povo foi distinguido a serviço do imperador Frederico II durante a guerra civil no sul da Itália entre as forças papais e imperiais. 



Tomás foi colocado no mosteiro de Monte Cassino perto de sua casa como oblato (oferecido como um monge em perspectiva) quando ainda era um menino. Em 1239, depois de nove anos neste santuário de vida espiritual e cultural, o jovem Tomás foi forçado a voltar para sua família quando o imperador expulsou os monges porque eram muito obedientes ao papa. 



Ele foi enviado para a Universidade de Nápoles, onde encontrou pela primeira vez as obras científicas e filosóficas que estavam sendo traduzidas do grego e do árabe. Neste cenário, Tomás decidiu juntar-se aos Frades Pregadores, ou Dominicanos, uma nova ordem religiosa fundada há 30 anos, que partiu da forma paternalista tradicional de governo dos monges para a forma mais democrática dos frades mendicantes e da vida monástica de oração e trabalho manual para uma vida mais ativa de pregação e ensino. 



Entretanto, foi na cidade de Colônia, na Alemanha, que Aquino escreveu suas primeiras obras, sendo discípulo do bispo, filósofo e teólogo alemão Santo Alberto Magno, conhecido como Alberto, o grande.



O encontro entre o evangelho e a cultura de seu tempo formou o centro nevrálgico da posição de Tomás e direcionou seu desenvolvimento. Normalmente, seu trabalho é apresentado como a integração do pensamento cristão da filosofia aristotélica recentemente descoberta, em competição com a integração do pensamento platônico efetuada pelos Padres da Igreja durante os primeiros 12 séculos da Era Cristã. 



Tomás de Aquino deve ser entendido em seu contexto como religioso mendicante, influenciado tanto pelo evangelismo de São Francisco de Assis, fundador da ordem franciscana, quanto pela devoção à erudição de São Domingos, fundador da ordem dominicana.




Quando Tomás de Aquino chegou à Universidade de Paris, o influxo da ciência árabe-aristotélica estava despertando uma forte reação entre os crentes, e várias vezes as autoridades eclesiásticas tentaram bloquear o naturalismo e o racionalismo que emanavam dessa filosofia e, segundo muitos eclesiásticos,  seduzindo as gerações mais jovens. 


Depois de obter o grau de bacharel, recebeu a licentia docendi (licença para ensinar) no início de 1256 e pouco depois terminou o treinamento necessário para o título e privilégios de mestre. Assim, no ano de 1256 começou a ensinar teologia em uma das duas escolas dominicanas incorporadas na Universidade de Paris.


Na época da Páscoa, em 1272, Tomás retornou à Itália para estabelecer uma casa de estudos dominicana na Universidade de Nápoles. Este movimento foi, sem dúvida, feito em resposta a um pedido do rei Carlos de Anjou, que estava ansioso para reviver a universidade. 


Em janeiro de 1274, Tomás de Aquino foi pessoalmente convocado pelo Papa Gregório X para o segundo Concílio de Lyon, que foi uma tentativa de reparar o cisma entre as igrejas latina e grega. No caminho, ele foi acometido de uma doença e parou na abadia cisterciense de Fossanova, onde morreu em 7 de março. 



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