quinta-feira, 11 de agosto de 2022

MICHEL DE MONTAIGNE E A DÚVIDA COMO UMA ARMA CONTRA O FANATISMO RELIGIOSO

 







Michel de Montaigne (Michel Eyquem de Montaigne), foi um filósofo, escritor e humanista francês considerado o inventor do gênero ensaio pessoal quando publicou sua obra Ensaios, em 1580. Neles, escreveu um dos autorretratos mais cativantes e íntimos já feitos, a par dos de Santo Agostinho e de Rousseau. Ele foi influenciado por diversas correntes filosóficas, sobretudo pelo Humanismo renascentista.


Michel de Montaigne nasceu no castelo de Montaigne, em Saint-Michel-de-Montaigne, na região de Bordeaux, na França. Todos os seus familiares falavam com ele apenas em latim. Como resultado, o menino só foi aprender francês aos seis anos de idade, quando foi internado no Collège de Guyenne, em Bordeaux. Não está claro onde nem se Montaigne estudou Direito. A única coisa que se sabe com certeza é que seu pai lhe comprou um escritório no Tribunal de Périgueux. 


Contexto histórico


Vivendo na segunda metade do século XVI, Montaigne testemunhou o declínio do otimismo intelectual que marcou o Renascimento. A Reforma calvinista seguida de perto pela perseguição religiosa e pelas Guerras de Religião (1562-1598) abalou as imensas possibilidades humanas, decorrentes das descobertas dos viajantes do Novo Mundo, da redescoberta da antiguidade clássica e da abertura de horizontes acadêmicos por meio das obras dos humanistas. Esses conflitos foram de fato guerras políticas e civis, além de religiosas, marcadas por grandes excessos de fanatismo e crueldade. 



As ideias de Michel de Montaigne


Sob a influência de seu amigo La Boétie, o filósofo adota a pretensão estoica de alcançar a verdade absoluta. Porém, seu espírito convive mais com a dúvida, e a experiência estoica certamente marcou, para sempre, a ruptura de Montaigne com qualquer ideia de verdade absoluta. O estoicismo foi uma escola e doutrina filosófica surgida na Grécia Antiga, que prezava a fidelidade ao conhecimento e o foco em tudo aquilo que pode ser controlado somente pela própria pessoa, desprezando todos os tipos de sentimentos externos, como a paixão e os desejos extremos. 


Montaigne também foi seduzido pelos filósofos do ceticismo, doutrina segundo a qual o espírito humano não pode atingir nenhuma certeza a respeito da verdade, o que resulta em um procedimento intelectual de dúvida permanente e na abdicação de uma compreensão metafísica, religiosa ou absoluta do real. Segundo esses filósofos, se o homem não sabe nada de si mesmo, como pode saber tanto sobre o mundo e sobre Deus e sua vontade? A dúvida é, para Montaigne, uma arma contra o fanatismo religioso.




Educação voltada para o entendimento e para a consciência


Montaigne considerava que a educação deveria criar seres humanos voltados para a investigação e conclusões, ao mesmo tempo que eles exercitassem a mente para um posicionamento crítico do indivíduo. Nas palavras do filósofo: cuidamos apenas de encher a memória, e deixamos vazios o entendimento e a consciência. O ensino deveria estar atrelado ao empirismo, doutrina segundo a qual todo conhecimento provém unicamente da experiência, limitando-se ao que pode ser captado do mundo externo, pelos sentidos, ou do mundo subjetivo, pela introspecção, ou seja, por meio de experiências práticas. 


O esquema de memorização e o uso dos livros, baseado na cultura livresca do Renascimento, afastaria os alunos do conhecimento. Na cultura livresca, os estudantes não aprenderiam de forma rápida e ainda, não teriam prática para solucionar diversos assuntos de suma importância, ligados ao desenvolvimento humano e à moral.


No domínio da educação, deve-se respeitar a personalidade da criança para se formar um homem honesto e capaz de refletir por si mesmo. Esse homem deverá procurar o diálogo com os outros, tendo senso de relatividade sobre todas as coisas. Assim, ele conseguirá se adaptar à sociedade onde deverá viver em harmonia com os outros homens e com o mundo. Ele será um espírito livre e liberto de crenças e superstições.




Ceticismo combinado com o desejo da verdade


Tendo em mente a época de dissimulação, corrupção, violência e hipocrisia em que viveu, não é surpresa que o ponto de partida dos Ensaios esteja situado na negatividade, a negatividade do reconhecimento de Montaigne da regra das aparências e da perda de conexão com a verdade do ser. 


O ceticismo de Montaigne está refletido no título francês de sua obra, Essais, ou Tentativas, que implica não uma transmissão de conhecimento comprovado ou de opinião confiante, mas um projeto de tentativa e erro. Nem uma referência a um gênero estabelecido nem uma indicação de uma necessária unidade interna e estrutura dentro da obra. O título indica uma atitude intelectual de questionamento e de avaliação contínua.


Seu ceticismo não exclui a crença na existência da verdade, mas constitui uma defesa contra o perigo de localizá-la em noções falsas, não examinadas e impostas externamente. Isso leva à rejeição de ideias comumente aceitas e a uma profunda desconfiança de generalizações e abstrações; também mostra o caminho para uma exploração do único reino que promete certeza: o dos fenômenos concretos e, principalmente, o fenômeno básico de seu próprio “eu” corpo e mente.




Esse eu, com todas as suas imperfeições, constitui o único lugar possível onde a busca da verdade pode começar, e é por isso que Montaigne não deixa de afirmar que eu sou eu mesmo a matéria do meu livro. Ele descobre que sua identidade, sua “forma mestra”, como ele a chama, não pode ser definida em termos simples de um eu constante e estável, pois é algo mutável e fragmentado, e que a valorização e aceitação desses traços é a única garantia de autenticidade e integridade, a única maneira de permanecer fiel à verdade de seu ser e de sua natureza e não a aparências estranhas.


No entanto, apesar de sua insistência de que o eu guarde sua liberdade em relação às influências externas e à tirania dos costumes e opiniões impostas, Montaigne acredita no valor de ir além do eu. De fato, ao longo de seus escritos, como fez em sua vida privada e pública, ele manifesta a necessidade de manter vínculos com o mundo das outras pessoas e dos acontecimentos. 


Para esse ir e vir necessário entre a interioridade de si e a exterioridade do mundo, ele utiliza a imagem da sala e do quarto dos fundos: o ser humano tem uma sala de frente para a rua, onde se encontra e interage e um quarto dos fundos. Ele precisa sempre recuar para o quarto dos fundos do eu mais privado, onde pode reafirmar a liberdade e a força da identidade íntima e refletir sobre os caprichos da experiência. 


Ensaio como um novo gênero literário


Em março de 1580, Michel de Montaigne publicou a primeira edição de Ensaios, constituída de dois livros divididos em 94 capítulos. Uma segunda edição foi publicada em 1582, e a terceira surgiu em 1588. Seu livro tornou-se uma das mais importantes e influentes obras do Renascimento e exerceu profunda influência sobre o pensamento moral europeu dos séculos XVII e XVIII.




A obra estabeleceu o ensaio como um novo gênero literário, onde o escritor faz reflexões pessoais e subjetivas sobre diversos temas, entre eles, a religião, a educação, a amizade, o amor, a liberdade, a guerra etc. 


Conceitualmente, os Ensaios refletem os valores clássicos das correntes céticas, estoicas e epicuristas da filosofia helenística. O epicurismo foi a escola filosófica criada por Epicuro de Samos em meados do século IV a.C. a qual afirma que, para atingir um estado de plena liberdade, tranquilidade e libertação do medo, o indivíduo deve manter-se em busca de prazeres moderados. 


Michel de Montaigne deu esse nome porque a obra não era ciência nem Literatura, apenas opiniões pessoais. Reunida em três volumes, foi a única obra publicada por ele sendo considerada um marco para o nascimento do gênero ensaio pessoal. Os artigos que merecem destaque são: Dos canibais, Sobre a Vaidade, Sobre a Amizade, Dos livros e Jornal de Viagem.




A Europa ocidental mais bárbara do que os nativos do  Novo Mundo


Montaigne estende sua curiosidade sobre os outros aos habitantes do Novo Mundo, que conheceu por meio de seu vivo interesse por relatos de viagens orais e escritos e por meio de seu encontro, em 1562, com três índios brasileiros que o explorador Nicolas Durand de Villegagnon trouxe de volta para a França. 


Dando um exemplo de relativismo e tolerância cultural ele encontra essas pessoas, na fidelidade à própria natureza e na dignidade cultural e pessoal e no senso de beleza, muito superiores aos habitantes da Europa Ocidental que, nas conquistas do Novo Mundo e em suas próprias guerras internas, se mostraram os verdadeiros bárbaros. O sofrimento e a humilhação impostos aos nativos do Novo Mundo por seus conquistadores provocaram sua indignação e compaixão.


Meditação completamente original sobre si mesmo



Embora tenha sido, ao que parece, um católico romano leal, se não fervoroso, Montaigne desconfiava de todas as pretensões humanas de conhecimento de uma experiência espiritual que não está ligada a uma realidade concretamente vivida. Ele se recusou a especular sobre uma transcendência que está além do conhecimento humano, acreditando em Deus, mas recusando-se a invocá-lo de maneiras necessariamente presunçosas e redutivas.





Apesar de conhecer os filósofos clássicos, suas ideias brotam menos dos ensinamentos deles do que de uma meditação completamente original sobre si mesmo, que ele estende a uma descrição do ser humano e a uma ética de autenticidade, auto-aceitação e tolerância. Os Ensaios são o registro de seus pensamentos, apresentados não em estágios organizados artificialmente, mas como eles ocorreram e se repetiram em diferentes formas ao longo de sua atividade de pensamento e escrita. 




Os Ensaios incorporam um profundo ceticismo em relação às pretensões perigosamente infladas do ser humano ao conhecimento e à certeza, mas também afirmam que não há maior conquista do que a capacidade de aceitar o próprio ser sem desprezo ou ilusão, na plena realização de suas limitações e de sua riqueza.


Leitores de Montaigne


Nem todos os seus contemporâneos manifestaram o entusiasmo de Marie de Gournay, que desmaiou de excitação na primeira leitura dos Ensaios. Ela reconheceu no livro toda a força de uma mente incomum se revelando, mas a maioria dos intelectuais do período preferiu encontrar em Montaigne uma reencarnação segura do estoicismo. 




Montaigne continua a ser estudado em todos os aspectos de seu texto por um grande número de estudiosos e a ser lido por pessoas de todos os cantos da terra. Em uma época que pode parecer tão violenta e absurda quanto a dele, sua recusa à intolerância e ao fanatismo e sua lúcida consciência do potencial humano de destruição, juntamente com sua crença na capacidade humana de autoavaliação, honestidade e compaixão, atrai tão convincente como sempre para muitos que encontram nele um guia e um amigo.








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